Estamos
cheios no presente, enfadados com as ebulições do agora; na verdade, estamos
cheios do “hoje” e de suas realidades, no mundo e, principalmente, no Brasil.
Entender o presente é preciso reconciliar-se com o passado. Entender o passado
é preciso saber que estamos fincados no presente, com os nossos ritos, ritmos e
percepções. No entanto, não nos desanimemos, pois existe uma técnica, um
trampolim, que a princípio aparenta dificultar ou também diversificar o
entendimento, mas na verdade, aclara e muito os elos do presente/passado (ou
vice-versa) e, especialmente, ajuda o iniciar de uma explanação. Chamamos esse
artifício, diga-se de passagem, com muito de entendimentos próprios, de
“hermenêutica”. É quem puxa a interpretação, quem nos faz treinar proposições e
chegar a explicações coerentes, através desse processo que inclui a
comunicação. Pois bem, de forma coerente e séria, nos comuniquemos.
Dos
muitos processos de integração capitalista no mundo, o Brasil, que tinha seu
capitalismo tardio e dependente, chegou a se tornar tanto transnacional quanto
a oligopolista e subordinado aos centros de expansão deste sistema, no final da
primeira metade do século XX. Ocorreu de fato uma penetração na economia
brasileira de multinacionais, sobretudo, de um bloco liderado por interesses
americanos que deram lugar a novas relações econômicas e políticas. Apareceram
daí grandes unidades industriais e financeiras integradas a partir de uma
crescente concentração econômica e centralização de capital. E não para por aí,
pois ainda havia um processo de controle oligopolista do mercado. Aquele
capital “nacional”, o surgimento de empresas “nacionais”, que foram
predominantes no governo de Getúlio Vargas, perdiam espaços e coexistiam
fortemente já nos anos 50 com o capital “multinacional”. O capital “nacional”
só conseguiria coexistir de modo significativo somente em sua forma ASSOCIADA
ou em EMPRESAS pertencentes ao Estado. O clima era de demasiada inserção de
grupos multinacionais multibilionários. E advinha; quem mantinha uma posição
proeminente dentro destes grupos no Brasil? Os norte-americanos, claro. Não é
de se estranhar que através desse controle oligopolista do mercado, as
companhias multinacionais ditavam o ritmo e a orientação da economia
brasileira, ou melhor, da capacidade técnica, militar, empresarial e política
brasileira. Contudo, espera aí. Qual o motivo dessa volta ao passado, dessa
desdobrada narrativa, ou melhor, desta hermenêutica?
A
causa dessa volta – para se antecipar aos críticos e moralistas que possam
enxergar como pretexto - é o hoje, mesmo sabendo que os ventos que batem
atualmente tocam sob outras formas e realidades. O Brasil do presente está
embebido em ódio, contra um governo, contra um partido, contra uma ala, contra
um povo, contra escolhas, contra democracias, contra inclusão social, contra
muitos outros aspectos. De onde vem esse ódio? O que se esconde atrás dele? É
muito simples, embora, tenha sido preciso fatigadamente puxar hermenêuticas.
Sabe o que se acaçapa atrás dele? Todo o passado e suas marcas não
cicatrizadas, rememoradas nas linhas anteriores. O Brasil é controlado pelo
capital “multinacional” e associado. É multinacional, é transnacional, é de
grupos multibilionários que nos dificultam a contagem, é de berço, é de um
processo duro de entendimento, quem dirá de aceitação. Esse capital associado é
que prolonga as velhas elites, é o que controla e dificulta políticas sociais
de inclusão e posturas governistas que primam pela dizimação do inferno da
pobreza; esse capital transnacional é o que bloqueia, mesmo quando dando certo,
os espaços conquistados e reservados aos que não têm selos familiares
nobiliárquicos, onde os projetos político-sociais fizeram justiça, fizeram as
classes atingidas pelos seus pontos baixos terem vez. Há um marketing nacional e transnacional
produzido por mídias conservadoras e que não respeitam os ritos democráticos. Por
isso fomenta um sentimento de ódio, diga-se de passagem, um ódio coletivo dos
ricos, daqueles bem relacionados (e controlados) internacionalmente, pelas
multinacionais, pelos dominantes também nacionais, que viram soar o “sinal de
alarme” de suas classes dominantes, uma vez que há um sucesso contínuo e
“inesperado” de forças minoritárias; ou melhor, do povo, das comunidades periféricas,
etc. Mas, vejam bem. Por que o passado dos anos 50, dos anos 60? Qual o real
elo?
Foram
os anéis burocráticos do capital “multinacional” e associado que controlaram e,
posteriormente, dominaram o poder populista e democrático daquele período.
Impuseram suas doutrinações e disseminação ideológica goela abaixo, onde o
regime populista nos anos 60 apenas sobrevivia conforme as “regras do jogo”.
Quando o regime populista tentou programar um bolsão de reformas sociais,
políticas, econômicas e culturais, o capital multinacional e associado, com o
“dedão” avassalador norte-americano, percebeu que não era mais possível
conviver com as “regras do jogo”. Partiram para um assalto do poder e, como
sabemos, tivemos um golpe no ano de 1964. E para que melhoremos a nominação
desse golpe, já que se tem intento sério de se comunicar com o leitor, fujamos
de um “Golpe Militar”, pois, de forma mais precisa, foi um assalto, um Golpe
técnico-empresarial-militar, do capital multinacional e seus associados, de
grupos multibilionários, que tentavam esse assalto ao poder desde Vargas e
conseguiram o desígnio no governo de João Goulart (1961-1964). As esquerdas
ainda ampliavam sua organicidade, o Partidão (PCB), segundo cientistas
políticos, sociais e historiadores, praticamente ficou imóvel diante daquele
nível técnico-político-militar cruel de enfrentamento. Do resto, nós sabemos:
rasgado durante 21 anos o véu da democracia.
Hoje,
não é diferente, uma vez que o capital multinacional e associado ainda controla
e desenvolve uma perícia organizacional e política própria para influenciar as
diretrizes políticas no Brasil, sobretudo, dão suporte e criam situações para
que associados e líderes locais “assaltem o poder” vigente. Como disse o
conceituado cientista político uruguaio René Dreifuss, nos anos 80, há “uma intelligentsia política, militar,
técnica e empresarial, isto é, nos intelectuais orgânicos dos interesses
multinacionais e associados e nos organizadores do capitalismo brasileiro”. Ela
tem suas agências e seus agentes, que de forma associada são capazes de exercer
forte pressão sobre os governos dos países onde opera. São criados os climas favoráveis
para investimentos usando sócios locais e para que seus papéis políticos sejam
garantidos e estratégicos para as companhias. Por isso o sentimento de ódio no
Brasil nutrido pelas elites econômicas, pelos filhos das mídias conservadoras e
por vários parlamentares direitistas (adotados pelos holdings transnacionais) diante do governo atual, diante das
classes que penosamente tiveram uma trajetória de muitas lutas para serem
abraçadas pelo poder social, diante das esquerdas (estas metamorfoseadas, persistentes,
entre outras, que já perderam o “S” de Socialista e o “C” de Comunista), etc.
O ódio
não é contra o governo atual, contra o Partido dos Trabalhadores, contra os
outros Partidos de esquerda, contra a corrupção, contra as roubalheiras na
Petrobrás, contra os maus dirigentes, e sim, mais contra as extensões do
governo do que o próprio governo. É contra o povo pobre que vem ascendendo socioeconomicamente;
é contra as políticas de inclusão social; é contra a transparência pública; é
contra o caminho das urnas, que rejeitou os projetos políticos neoliberais; é
contra os NÃOS para com a redução da maioridade penal; é contra a DIVERSIDADE;
ou seja, esse ódio é contra todas essas extensões dos últimos governos petistas
e que ainda precisam ser continuadas. Como nos alerta o escritor Leonardo Boff
a partir do clássico Conciliação e
Reforma no Brasil (1965), de José Honório Rodrigues, esse ódio é de uma “maioria que foi sempre
alienada, antinacional e não contemporânea; nunca se reconciliou com o povo;
negou seus direitos, arrasou suas vidas e logo que o viu crescer lhe negou,
pouco a pouco, a aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no
lugar que continua achando que lhe pertence”. Corrobora também nesse sentido, o
viés de um líder do MTST, em entrevista na Carta Capital em 15.11.2014: “Há um ranço de classe, de uma elite, de uma burguesia,
que nunca aprendeu a conviver com o povo, uma elite que sequer admitiu a
abolição da escravatura”. E contextualizando com a hermenêutica das épocas de
Vargas e Jango, em um artigo do Diário do Centro do Mundo (DCM), postado em
01.03.2015, o jornalista Paulo Nogueira aponta também, que esse ódio vem de uma
classe manipulada: a classe média. “A classe média é facilmente
manipulada. Getúlio foi boicotado assim, e depois dele Jango também. O ódio de
classes que marca o Brasil de hoje deriva daí. Os “corruptos”, no discurso
calculado da imprensa, estão acabando com o Brasil e enriquecendo à custa de
todo mundo”.
Percorridos
e nominados os interesses de quem controla, de quem realmente está por trás do
aparente, de quem tem o real domínio na política e economia brasileira (o
capital multinacional e associado), por último, é de se mencionar mais uma vez
as esquerdas no Brasil. Estas estão bastante segregadas e, algumas, cada vez
mais sendo laranjas de partidos reacionários, quando não fundindo-as com estes
últimos. Outras estão nos velhos projetos políticos, diga-se de passagem,
enfadados de teorias e distantes das realidades consuetudinárias, sobretudo, de
militâncias e das “ruas”. A contradição sempre foi presente nas esquerdas e nas
várias tendências que elas discutem e seguem. No entanto, trotskistas,
stalinistas, centro-esquerda, entre outras articulações de esquerdas, que
compõem vários partidos no Brasil, têm de focar no inimigo comum: o capital
multinacional associado; os parlamentares desses holdings transnacionais; nos Eduardo Cunhas; no ódio contra as
conquistas sociais; nos
privilegiados golpistas, e deles a imprensa que é o porta-voz e não querem abrir
mão de suas mamatas; nos projetos e ações que almejam o “assalto ao poder” e
criminalizam por criminalizar todos aqueles que lutam pelos ritos democráticos.
Esse é o momento. Ele é emergencial. Não dá para ser adiado. As elites econômicas
não cessarão de vencer e de bloquear o que não lhe convêm. Elas começam de si
para o mundo e não do mundo para se chegar ao coletivo e, do coletivo, se
chegar a si. Eles não têm “percepção”. Finalizando, um dos grandes intelectuais
contemporâneos, Deleuze, respondeu uma vez, quando questionado “o que é ser de
esquerda”, de uma forma que reforça essa sensibilidade ou acúmen, no bom
sentido, que é estar nessa responsabilidade e nos alertarmos contra o ódio
reacionário:
“Ser de esquerda é o contrário. [...] Primeiro tem que perceber
o contorno. Começar pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo,
depois a França, até chegarmos à Rue de
Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o
horizonte. [...] Ser de esquerda é começar pela ponta e considerar que os
problemas devem ser resolvidos. [...] Ser de esquerda é saber que os problemas
do 3º Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. [...] A
esquerda é o conjunto de processos de devir (movimento) minoritário. Eu afirmo:
a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: Saber que
a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir (movimento)”.